Saúdo o ciclo de repetir a minha
manhã ao anoitecer, que se repete quando chega a madrugada. E então, já é manhã
de novo e preciso amanhecer, mesmo ainda não acordada.
Enquanto aguardo o amanhã chegar procuro nas paredes as palavras mofadas pelas
salivas que caíram do céu.
Visto um véu pra ver diferente aquela mesma vista de sempre da janela que abri
pro sol entrar. Entrou também o vento fresco com cheiro de hidratante de
cabelo, os fios voaram quase que pra fora do próprio cheiro, se misturando às
folhas que dançavam com o mesmo efeito. Folhas e fios, ambas num topo
sustentado por um tronco, de casca sensível com raiz invisível. Se diferem
apenas pelo lado da muralha invencível prendendo uma sim, outra não.
Quando fecho as janelas ouço através das orelhas dos livros o ronco do almoço.
Já entardeceu. Onde se passaram as horas entre o pão e o feijão que ainda nem
amoleceu? Entre cantos e quinas a melodia da cozinha se espalha pelo corpo
todo, de batata palha, madeira ou tijolos, tanto faz, ainda é corpo casa, e
abriga a briga fugaz que já esfriou de tanto esperar respostas sem paz.
Obrigados a requentar a interação através de telas e teclas, ao vivo ou não, de
onde vem esse cheiro de estragado que envolve toda uma nação? Queimou. Os
direitos, o dinheiro, a comida e a razão. O controle do tempo poderia ser o
mesmo da televisão, decidir se faz chuva ou se atravesso direto pro verão. Do
ano que vem.
No buraco que se assentou de tanto ficar sentada, sigo sentindo dores que se
arrastam de um cômodo para o outro incômodo, procurando formas criativas de
passar por esse tempo icônico. Lamento, por tantos que voltaram à terra e
enterro a vontade de sair de mim, pois só tenho a mim mesma e aterrada ficarei
comigo aqui, só saio em palavras, que voarão com aquele mesmo vento que me
trouxe aqui pra dentro, e que agora me assopra e sussurra que é quase noite
escura, mas eu já me escureci faz tempo, dentro de toda essa loucura.
Diário
Minha Autoria
De tempos em tempos
De tempos em tempos
me torno outra, por respeito à mim mesma.
Me transformo, me
multiplico, me olho.
Me busco, me
encontro, me encaro,
Me tateio tanto,
até me atar entre os dedos, meus.
Me reinvento, me
entendo, me acalmo.
De tempos em tempos
vou me tornando mais eu.
Mais do que ontem,
mais do que o instante que acabou de passar, mais do que agora mesmo.
Me renovo, me
troco, me escuto.
Me. Meu. eu.
Minha voz, meu
cheiro, meu paladar.
De tempos em
tempos, caminho.
Sempre à caminho do
caminhar, pois ele nuca acaba.
Eu nunca chego aonde
quero chegar, pois até chegar... já mudei o lugar onde queria estar.
Me confundo, me
resumo, me profundo demais, e não consigo voltar.
Me desnudo por
dentro, pra mim.
Me mudo, por dentro,
pra mim.
Me mudo pra dentro
de mim.
De tempos em
tempos,
paro de me ver no
passado e semeio sementes.
Me planto para o
futuro presente.
Me curo. Me sinto,
muito.
Me amo, me clamo,
me re-clamo. Reclamo de mim?
De tempos em tempos
venho perdendo o medo de entender quem sou...
Medo de entender
que sou.
Só. Sou só. Sou, e
só.
Me grito, me
alcanço, me deixo escorrer, me deixo ser.
De tempos em
tempos, eu sou: eu.
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